E é ela, interpretada por Juliane Moore, que guia a multidão e vê a natureza humana, praticamente invisível nas sociedades modernas, na sua forma mais crua e perversa. As pessoas reunidas, vivendo no limite entre o ser racional e irracional, com seus instintos mais primitivos sendo revelados à medida que a fome, a falta de higiene e de espaço aumentam. Como o personagem de Gael Garcia Bernal, um barman que logo se revela um ditador, toma o poder e pratica as atrocidades que apenas nós, humanos, conseguimos. Quando, por exemplo, ele e seu bando passam a administrar as refeições destinadas às alas do centro de isolamento – que mais parece um campo de concentração – e exigem pagamentos para a aquisição do básico para a sobrevivência, pagamentos que vão desde objetos de valor até os corpos das mulheres ali reunidas.
“Ensaio sobre a cegueira”, baseado no livro homônimo de José Saramago, consegue revelar a nossa natureza como poucos filmes já fizeram ou se propuseram a fazer. E é genial quando consegue essa transparência através da cegueira. Afinal, em um mundo de cegos ninguém pode ver o que estamos fazendo e quem somos. Ainda mais nas situações mais extremas - que muitos passam hoje, que não vemos ou queremos não ver. Mas há de se ressaltar também a capacidade que nós temos de ter alegria em situações adversas e como nos adaptamos a elas, como diz um dos personagens: “A alegria e a tristeza são como água e óleo: não se misturam, andam juntos”. É um filme excepcional, talvez o melhor do ano. Mais um grande filme dirigido por Fernando Meirelles, que enxerga o cinema como poucos diretores desta geração conseguem, motivo de orgulho para nós, brasileiros.
E para José Saramago também: