segunda-feira, 21 de abril de 2008

O quilombo do mundo

[...] O Brasil macaqueou o sistema de cotas raciais dos Estados Unidos. E macaqueou tarde, num momento em que o próprio candidato negro à Casa Branca já admite aboli-lo. O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade das leis que instituíram as cotas raciais no Brasil. É uma chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras.

O ministro Carlos Ayres Britto deu um voto a favor do sistema de cotas raciais, argumentando o seguinte: "É pelo combate a situações de desigualdade que se concretiza o valor da igualdade". Isso se aplicaria se a desigualdade se originasse na universidade. A gente sabe que a realidade é outra. A gente sabe que a desigualdade nasce no ensino básico, e é lá que ela tem de ser combatida. A má qualidade da escola pública cria uma casta de párias analfabetos, os intocáveis da tabuada, dalits brancos e negros, que nunca poderão se igualar aos que estudam na escola particular.

É desolador ter de repetir sempre a mesma lengalenga. E a lengalenga é: o Brasil gasta dinheiro de mais na universidade e dinheiro de menos no ensino básico. Se é para macaquear os Estados Unidos, temos de macaqueá-los por inteiro. A universidade pública americana cobra mensalidade dos alunos. Quem pode pagar, paga. Os outros se arranjam com bolsas, empréstimos ou bicos. Se o Brasil fizesse o mesmo, cobrando mensalidade na universidade pública, sobraria mais dinheiro para investir onde importa: no bê-á-bá. [...]

(Diogo Mainardi - 23.04.08)

Thales Azevedo.

sábado, 19 de abril de 2008

Centenário de Bette Davis

"Eu nunca estarei abaixo do título."

Thales Azevedo.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Roman Polanski e a Trilogia dos Apartamentos

Nascido em Paris e filho de um judeu com uma católica, Roman Polanski, grande e perfeccionista cineasta, consagrado internacionalmente apenas em 2002, com O Pianista, teve uma vida marcada por episódios perturbadores e polêmicos. Adquiriu assim uma personalidade refletida, muitas vezes, nos tons de suas obras. Sua mãe morreu num campo de concentração e sua ex-mulher, Sharon Tate, grávida de oito meses, foi assassinada por integrantes de um culto liderado por Charles Manson. Condenado por estupro de uma garota de 13 anos, Polanski não pode ir aos Estados Unidos desde 1978. Ambientes fechados e sufocantes, marcados por um horror claustrofóbico, clima obscuro e natureza enervante são elementos que unem, incidentalmente, três de seus maiores filmes, conhecidos como Trilogia dos Apartamentos: Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary e O Inquilino.

Talvez o mais denso dos três, Repulsa ao Sexo, de 1965, é o primeiro trabalho do diretor em língua inglesa. O elenco é encabeçado pela belíssima Catherine Deneuve, interpretando, incrivelmente bem, Carol, uma manicure que vive com a irmã liberal (Yvonne Furneaux) num pequeno e escuro apartamento em Londres. Com sérios distúrbios psicológicos e sexuais, Carol não tolera aproximações masculinas que ultrapassem um frágil limite. A primeira seqüência, com um close nos olhos distantes de Deneuve, sem palavra alguma (por sinal, a protagonista quase não fala), já permite a percepção de que algo foge aos parâmetros da normalidade. Quando a irmã resolve viajar por alguns dias com o namorado, a manicure se vê sozinha no apartamento. É o suficiente para que seus sinais de desequilíbrio comecem a se aprofundar. Delírio e realidade se confundem, agora, entre cenas fortes, envolvendo sexo e morte. A fotografia em preto e branco intensifica uma sensação de desconforto, juntamente com a direção de arte e com a trilha sonora minimalista. A construção é primorosa e o desfecho, antológico.


Respeitado na Europa, Polanski parte para seu primeiro filme nos Estados Unidos, em 1968, O Bebê de Rosemary, um dos mais assustadores já realizados. Ao se mudar para um apartamento, um casal, Rosemary e Guy, interpretado por Mia Farrow, impecável, e John Cassavetes, conhece velhinhos estranhos, novos vizinhos. Estes enchem de mimos os recém-chegados, levantando hesitação e desconfiança em Rosemary, enquanto seu marido, um jovem ator, parece hipnotizado com a presença dos mesmos. Rosemary engravida e os mimos se intensificam. Logo, os vizinhos cuidam de assumir o processo, acompanhando minuciosamente, indicando um médico conceituado e fazendo vitaminas alternativas recomendadas pelo próprio. A carreira de Guy, então, decola, a partir de eventos inusitados, como a cegueira repentina do candidato que iria assumir o seu papel. Rosemary, frágil e delicada, se torna confusa e paranóica, acredita estar sendo vítima de uma conspiração demoníaca. Guy teria feito um pacto com vizinhos feiticeiros, prometendo o bebê em troca de sucesso profissional. Como em Repulsa ao Sexo, realidade e alucinação passam a se misturar.

Habilmente, Polanski torna a trama ambígua, assim, mais verossímil, fortes argumentos sustentam tanto a hipótese de que a conspiração é real quanto a de que é apenas um delírio de uma mulher ansiosa que passa por uma gravidez complicada. Sendo o filme adaptado de um livro, os traços sobrenaturais óbvios foram cuidadosamente retirados. Robert Evans, o produtor (O Poderoso Chefão, Love Story), que colocou Polanski no filme, deu a este liberdade total para fazer alterações no roteiro. O satanismo, assunto bastante presente na sociedade ocidental no fim dos anos 60, nunca foi levado a sério pelo diretor. As cenas finais são tensas e marcantes, o suspense absoluto permanece. A direção de arte explora uma arquitetura gótica e a fotografia, repleta de sombras, é envolvente. Mia Farrow, pressionada pelo então marido, Frank Sinatra, para sair do projeto, acabou convencida a continuar, o que lhe custou o divórcio, mas rendeu, possivelmente, o filme mais brilhante de sua carreira.


Numa produção franco-americana de 1976, menos comercial, O Inquilino, a temática retorna, pela última vez. O protagonista deste filme perturbador, Trelkovsky, imigrante polonês que chega a Paris e aluga um quarto em um pequeno prédio suburbano, é interpretado pelo próprio Polanski, que se mostra talentoso também como ator e obtém um desempenho satisfatório. A antiga inquilina do apartamento alugado, Simone Choule, atirou-se da janela e está internada, com chances de sobrevivência muito remotas. Trelkovsky resolve lhe fazer uma visita e, no hospital, conhece Stella (Isabelle Adjani), amiga da interna, com quem começa um relacionamento. Presencia, com ela, neste mesmo momento, a morte de Simone. No prédio, então, o novo inquilino começa a perceber comportamentos estranhos por parte dos vizinhos, rígidos e repressores na manutenção da ordem do local, como quando os observa num banheiro externo, um de cada vez, olhando para o apartamento dele durante horas a fio, sem mover um músculo. Acaba por se sentir sufocado, sem espaço, a ter uma identidade difusa. Num diálogo com Stella, parte de um roteiro primoroso, lança uma das memoráveis falas:

Diz-me, em que preciso momento é que um indivíduo deixa de ser o que pensa que é? Cortas-me o braço. Digo ‘Eu e o meu braço’. Cortas-me o outro braço. Eu digo ‘Eu e os meus dois braços’. Tu tiras-me o estômago, os rins, presumindo que isso era possível e eu digo, ‘Eu e os meus intestinos’. E, agora, se me cortares a cabeça, eu diria ‘Eu e a minha cabeça’ ou ‘Eu e o meu corpo’? Que direito tem a cabeça de se apelidar eu mesmo?

De uma forma psicótica, Trelkovsky começa a se identificar com Simone Choule. Em meio a uma crise neurótica, acredita que os moradores do prédio conspiram para enlouquecê-lo. A partir de certo momento, os eventos deixam de ser exibidos pela perspectiva do protagonista, passam a ser expostos de acordo com o que vêem os vizinhos. Um processo chocante de loucura vem à tona, então, culminando num final surpreendente e estarrecedor. A grande utilização de sombras e tons escuros pelo fotógrafo Sven Nykvist, que acompanhou diversos filmes do gênio Ingmar Bergman, compõe um visual pesado e mórbido que se adequa à sensação reinante de paranóia. Polanski era amigo de Stanley Kubrick, ambos se admiravam. O primeiro se encantou com
Barry Lyndon, enquanto o segundo ficou fascinado com este O Inquilino. Assim, em mútua homenagem, Polanski realizou Tess, sob influência do épico, enquanto Kubrick rodou O Iluminado, thriller psicológico, também excelente, influenciado pelo franco-americano. A estréia dos dois foi praticamente simultânea.

Thales Azevedo.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Wish You Were Here - Pink Floyd

A banda inglesa Pink Floyd vinha de uma obra-prima, ‘The Dark Side of the Moon’, conceitual disco de 1973, quando lançou em 1975 ‘Wish You Were Here’, linda homenagem a Syd Barret, ex-vocalista e líder da banda, afastado por problemas psicológicos decorrentes de abuso de drogas alucinógenas, como o LSD, tornando-o esquizofrênico. Syd havia composto quase que inteiramente o primeiro álbum da banda, o incrível 'The Piper At The Gates of Dawn’, sendo, juntamente com o clássico ‘Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band’, dos Beatles, um dos mais conhecidos discos do movimento psicodélico marcante da década de 60. O afastamento o levou à casa de sua mãe, onde passava o tempo destinado à jardinagem, pinturas e atividades domésticas. Roger Waters assumiu, então, a liderança da banda e convidou David Gilmour para completar o espaço vazio que Syd Barret deixara. O Pink Floyd, aos poucos, foi ganhando mais espaço, vendendo muito, com críticas favoráveis, tornando-se uma das bandas mais influentes e respeitadas da história.

Roger Waters, David Gilmour, Richard Wright e Nick Mason ganhavam, então, o mundo, e encantavam gerações. A influência de Syd Barret nesse processo é inquestionável. Os integrantes sabiam disso. Nada mais justo, então, realizar uma homenagem ao criador da banda, certo? Pois bem, a obra-prima em questão é, então, criada. ‘Wish You Were Here’ tem apenas cinco músicas, mas com uma qualidade fora do comum. Aliás, comum é uma palavra que parece não constar no vocabulário do Pink Floyd, que se destaca por estar sempre inovando, com uma qualidade técnica invejável, comprovada na faixa de abertura do disco.

Em
‘Shine on You Crazy Diamond (Part I-V)’ a homenagem é clara, de forma poética, tocante, mágica e, antes de tudo, sincera. A decadência de Syd, junto com sua genialidade, seu modo incompreensível de ser, tem como plano de fundo a bela voz de Gilmour, completada – e suavizada – com um coral feminino, além de um instrumental extremamente bem elaborado, que chega até ao som marcante de sax, encerrando-a de forma mítica, que emociona. (Lembre-se quando você era jovem/Você brilhava como o sol/Continue a brilhar, louco diamante/Agora há um olhar em teu rosto/Como buracos negros no céu/Continue a brilhar, louco diamante/Você foi pego no fogo cruzado/Entre a infância e o estrelato/Arrastado pela brisa de aço/Vamos, alvo de risos distantes/Vamos, estranho, lenda, mártir/E brilhe!)

Aliás, pra se ter uma idéia do estado do
Syd Barret na época em que o disco estava sendo produzido, ele teria aparecido no estúdio com a cabeça e sobrancelhas raspadas, tão gordo e maltrapilho que os ex-parceiros de banda e homenageadores não reconheceram o gênio decadente, que há menos de uma década atrás havia idealizado e fundado o Pink Floyd. Tal acontecimento deprimiu a todos, mas o motivaram ainda mais a seguir em frente na gravação do disco, apesar de a banda estar, diga-se de passagem, fragmentada, com disputas de ego, em um completo turbilhão, com os membros mal se falando. Se a desarmonia era constante no cotidiano do grupo, o contrário reina nas composições, no instrumental e nas vozes em ‘Wish You Were Here’.

A segunda faixa é
‘Welcome to the Machine’. Nela, os sintetizadores de Richard Wright dão destaque ao clima futurista da música, com um pessimismo marcante, tendo como foco a alienação diante do sucesso, do dinheiro, fracasso e desilusão frente a “máquina”, a indústria fonográfica como um grande organismo promovedor, que transforma e exclui. (Bem-vindo meu filho/Bem-vindo à máquina... No que sonhou? / Tudo bem, te contamos no que sonhar/Sonhou com um grande astro/Ele tocava uma guitarra/E sempre comia bife no bar/E adorava dirigir seu Jaguar).

‘Have a Cigar’ segue a linha da música anterior. A decepção com a fama continua, de forma mais leve, com um clima mais rock and roll clássico, ainda assim aliado aos sintetizadores. Todo o processo da gravação do disco é aqui explicitado, como a pressão das gravadoras visado o lucro imediato. (Nós fomos nocauteados, ouvimos sobre as vendas/Você vai ter de lançar um álbum, você deve isso ao público/Estamos tão felizes que mal podemos contar/Todos são muito inexperientes/Você viu as paradas?) Todas essas mudanças parecem tirar aos poucos a identidade do grupo que se conheceu quando os integrantes ainda eram garotos. Estariam os integrantes, assim como Barret, no “no fogo cruzado entre a infância e o estrelato”? (The band is just fantastic, that is really what I think/Oh by the way, which one's Pink?).

A música mais universal é, sem dúvidas, a que deu o título ao disco.
‘Wish You Were Here’ é mais do que uma homenagem a Syd Barret. Ela é, ao mesmo tempo, para muitas pessoas, qualquer um pode identificar nela traços de suas vidas. O sentimento de perda, do peso de decisões não poderia ser cantado de forma mais bela, em uma das “baladas” mais lindas já feitas, sem dúvidas. (Como eu queria que você estivesse aqui /Somos apenas duas almas perdidas /Nadando num aquário /Ano após ano /Correndo sobre o mesmo velho chão/O que encontramos? /Os mesmos velhos medos /Queria que você estivesse aqui.)

O disco encerra com
‘Shine ou You Crazy Diamond (Part V-IX)’, completando a faixa inicial para fechar as cortinas do espetáculo. Não é tão impactante quanto a primeira parte, mas cumpre seu papel de homenagear o fundador de uma das mais influentes bandas da história. Syd Barret faleceu no dia 7 de julho de 2006 quase como uma lenda, de um potencial enorme que fora impedido, como já disse, por problemas psicológicos decorrentes do abuso de drogas. Mais do que uma bela homenagem, ‘Wish You Were Here’ foi a tentativa da banda em buscar novos objetivos desde o sucesso impactante e comercial do ‘The Dark Side of The Moon’, algo que incentivasse a nova fase artística do grupo. E Syd Barret foi essa força, esse motivo, mais do que merecido.




Nobody knows where you are, how near or how far.
Shine on you crazy diamond.
Pile on many more layers and I'll be joining you there.
Shine on you crazy diamond.
And we'll bask in the shadow of yesterday's triumph,
And sail on the steel breeze.
Come on you boy child, you winner and loser,
Come on you miner for truth and delusion, and shine!

Baixe
aqui o disco!


Alexandre Rios.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

quarta-feira, 9 de abril de 2008

A reinvenção do cinema e os jurássicos

“A digitalização e a internet podem transformar todo o processo cinematográfico, democratizando a produção e multiplicando as platéias. Mas, agarrada a seu monopólio, a indústria do audiovisual quer manter as tecnologias superadas e a idéia de que arte é para quem pode pagar.


O cinema mudou pouco até o advento das tecnologias digitais. O som, a cor, melhoramentos nas películas, na projeção, entre muitos outros, foram aperfeiçoamentos numa tecnologia básica que se consolidou no finalzinho do século 19, na famosa sessão dos irmãos Lumière. O modelo básico de produção, de circulação e de exibição permaneceu o mesmo. Já a digitalização das imagens e sons mudou tudo. Criou um paradigma novo, em que todas as etapas do processo cinematográfico se transformam: a captação, montagem, finalização; a difusão, que já nem precisa ser física; e a exibição, que gera novos formatos, espaços, relações. Essas mudanças implicam também, é obvio, em novas bases e condições econômicas para todas as etapas.

Este período – e processo – de adaptação do paradigma de cinema, que estamos vivendo, tem curiosas similitudes com o que aconteceu na época do surgimento do cinema. Durante um tempo, não se sabia muito bem o que fazer com ele. É certo que aquilo podia dar dinheiro, mas não havia um modelo de negócio (como se diz hoje) estabelecido. Que formato deveria ter o espetáculo; como devia ser negociado, distribuído, exibido? Os primeiros vintes anos do cinema foram de formatação do produto, com o desenvolvimento da linguagem e o estabelecimento de uma narrativa adequada ao consumo. Foi um período de formação de platéias, que evoluíram das feiras e teatros de variedades para as salas fixas proletárias e finalmente para um público mais "respeitável". Foram anos de uma verdadeira guerra, para que se estabelecesse um modelo de comercialização entre produtores, distribuidores e exibidores.

Hoje há interessantes analogias com aquelas situações. As novas tecnologias criam novas possibilidades, que se tornam formatos, que necessitam de novas formas de distribuição e consumo, engendrando novos mercados, que pedem novos modelos de comercialização. E quanto isto estará mexendo com a linguagem?

O fato é que essa etapa de grandes transformações está estruturada em um modelo. Um modelo que não é muito duradouro, que ainda não tem regras estáveis – apenas entendimentos comerciais mais ou menos provisórios. Uma situação que procura segurança, tão cara aos grandes negócios, mas que de momento trava batalhas complexas e violentas pela repartição dos mercados. Uma realidade que, para a quase totalidade da população e para os produtores e realizadores audiovisuais, é elitista, excludente, unilateral e concentradora.

Retratos da exclusão atual: mais de 60% dos jovens entre 15 e 29 anos nunca foram ao cinema. E 92% dos municípios não têm sequer uma sala

Há trinta anos, o Brasil tinha pouco mais da metade da população de hoje e pouco menos de 5 mil salas de cinema. O número de espectadores, por ano, andava em torno de 300 milhões. Nos anos 70 e 80, o modelo foi se transformando, de um cinema barato e popular para o figurino atual. Houve um período de crise aguda, quando o número de salas caiu para cerca de 900 e o público para quase 70 milhões anuais. Foi o fim dos cinemas na grande maioria das cidades e o desaparecimento dos cinemas de bairro.

Depois de uma “recuperação”, sob o novo modelo de consumo de elite, nos multiplexes de xópins, o número de salas chegou a 2.200. No entanto, essas salas são bem menores que as daquele tempo não tão distante (que tinham 500 lugares ou mais) e fica a dúvida de se houve efetivamente um aumento do número de assentos oferecidos. Porque o público cresceu pouco, e tem rondado em torno de 90 milhões de espectadores anuais.

O senso comum diagnostica rapidamente: “é por causa do vídeo, do DVD, da TV a cabo, da banda larga”. No entanto, nos países onde há mais acesso a todos esses recursos audiovisuais, o cinema apresenta números muito mais significativos. Nos EUA, são quase 40 mil salas de cinema. Mesmo no México, com condições mais parecidas e a metade da nossa população, o número de salas de cinema é 40% maior.

Em outras palavras, segundo dados de uma distribuidora estadunidense, mais ou menos 10% da população “vai pelo menos uma vez por ano ao cinema”. Ou seja, 90% não vão nunca. Mais de 60% dos jovens entre 15 e 29 anos, nunca foram ao cinema. Outro corte: 92% dos municípios brasileiros não têm sala de cinema. Aliás, quase a metade dos cinemas (48%) está concentrada nos estados de São Paulo e Rio. Sergipe, com 75 municípios, só tem cinemas em Aracaju; de fato, 17 estados brasileiros têm 15% das salas de cinema do País.

O cinema plural, mundial, é exibido numa rede minúscula, de menos de uma dezena de cidades brasileiras, que contam com um bom “circuito de arte”

Do lado da produção, o Brasil hoje faz quase 70 filmes de longa metragem por ano. No entanto, pelo menos 30% desses filmes simplesmente não são exibidos. Dos que conseguem chegar aos cinemas, quase todos são exibidos em situações muito precárias – de salas, datas – raramente atingindo números minimamente significativos. Explicando melhor: os filmes brasileiros ocupam cerca de 10% do mercado de exibição, ou seja, atingem em torno de 9 milhões de espectadores por ano. Desse público, uns dois terços concentra-se em dois ou três filmes (geralmente os que têm participação financeira de distribuidoras hollywoodianas, ou estão associados a empresas de comunicação), conforme o ano. E os outros 30, 40 filmes “partilham” o restante do público. Resumindo: 10% de um mercado que mal atinge 10% da população, significa que o cinema nacional se relaciona com menos de 1% dos brasileiros.

Que não se confunda esta constatação com uma forma qualquer de xenofobia. O cinema mundial — quer dizer, europeu, asiático, latino-americano, e mesmo o dos Estados Unidos, quando não é produto das corporações daquele bairro famoso de Los Angeles — enfrenta uma situação ainda pior. Na verdade é o concorrente, por excelência, do cinema brasileiro na mesma estreita faixa de 10% do mercado. O cinema plural, mundial, é geralmente exibido num circuito ainda mais limitado, de menos de uma dezena de cidades brasileiras, que contam com um bom “circuito de arte”. No ano passado, durante várias semanas, dois títulos apenas ocuparam mais de 70% de todas as salas do País. Logo em seguida esse número passou para três títulos, em cerca de 80% dos cinemas. Ou seja, mesmo com uma arquitetura multiplex, a exibição é cada vez mais simplex, concentrada. Hoje entra no Brasil um terço do número de filmes que vinha nos anos 80, inclusive norte-americanos. E 85% das bilheterias de cinema no Brasil estão concentrados em três distribuidoras de Hollywood.

As tecnologias digitais, associadas aos recursos propiciados pela internet, criam condições para uma democratização muito grande da produção. A distribuição elimina as cópias em película — que custam milhares de reais cada uma — e a própria instalação de salas e equipamentos de projeção diminuem muito de custo. Tudo aponta para a oportunidade e a necessidade de um modelo de circulação dos produtos audiovisuais em bases diferentes das atuais e, principalmente, com ingressos a preços compatíveis com o poder aquisitivo da população. É como um novo parto do cinema, na virada de outro século.

No entanto, na transição de paradigmas, a chamada indústria do audiovisual tem procurado garantir um controle exclusivo do processo, garantindo suas “margens” através da manutenção de tecnologias superadas, pela restrição do acesso e com a preservação de uma situação geral de monopólio. Desta forma, o modelo não serve para o público, não atende às necessidades dos realizadores e impede uma verdadeira integração cultural com o mundo.”

Felipe Macedo - Cineclubismo no Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique.

Lucas Caires

sábado, 5 de abril de 2008

Se o Oscar de melhor filme pudesse ser dividido em dois...

Se o Oscar de melhor filme desse ano pudesse ser dividido, certamente dois filmes o mereceriam. Tive a oportunidade de ver ‘Sangue Negro’ e ‘Onde os fracos não têm vez’ apenas recentemente, graças ao digníssimo cinema da minha cidade. Apesar da demora, a recompensa valeu a pena. É sempre bom ver filmes que serão um dia considerados clássicos do cinema, e esses dois certamente serão.

À frente dessas duas grandes produções, três diretores americanos. Paul Thomas Anderson que, apesar de ser relativamente jovem – tem apenas 37 anos -, já dirigiu dois filmes cultuados indicados ao Oscar por melhor roteiro, ‘Boogie Nights’ e ‘Magnólia’, antes de firmar-se de vez na indústria cinematográfica com ‘Sangue Negro’, sendo considerado um dos melhores realizadores do cinema americano, atualmente. De outro lado, os irmãos Joel e Ethan Coen, famosos pela criatividade marcante em seus filmes, como ‘Fargo’, de 1996, que lhes renderam o Oscar de melhor roteiro original.

A competência com que os três diretores trabalharam em suas produções é impressionante. Os dois filmes esbanjam direções seguras, criativas e, antes de tudo, pouco preocupadas com o lado comercial, já que ambos os filmes possuem ritmos contemplativos, que nos guiam sabiamente até os desfechos brilhantes das obras.

A trilha sonora de ‘Sangue Negro’ realmente se destaca e impressiona. Ela é revolucionária, imprevisível, já que parece ser independente da trama à primeira vista, mas que, no final, tem um papel fundamental na construção das cenas e progresso da narrativa. As composições, feitas por Jonny Greenwold, guitarrista da banda inglesa ‘Radiohead’, têm força própria, com fortes acordes, lembrando muito a trilha sonora de ‘De olhos bem fechados’, do diretor Stanley Kubrick. Por outro lado, a ausência quase completa de trilha sonora no filme dos irmãos Coen prova o quanto ambos conseguem prender a atenção do espectador, criando cenas tensas e empolgantes mesmo sem o auxílio de composições e que dão ainda mais vigor à frieza dos personagens envolvidos na trama, que nos atinge de forma seca e direta.


Os aspectos visuais também surpreendem através das belas fotografias. Em ‘Sangue Negro’, a escuridão presente nos remete ao clima sombrio da exploração de petróleo nos Estados Unidos, encorpado no personagem central da trama, Daniel Plainview, um homem ganancioso, explorador de recursos naturais – e de pessoas -, soberbamente interpretado por Daniel Day-Lewis, atuação que lhe rendeu o Oscar de melhor ator. Já em ‘Onde os fracos não têm vez’, o oeste americano, com toda a sua nostalgia é fielmente retratado. A suposta calmaria deste lugar, onde o tráfico é realizado nas entrelinhas, nas paisagens secas, debaixo de um calor tórrido e, por vezes, traiçoeiro, serve de plano de fundo para uma história que se passa na década de 80 e que mostra como os tempos estão mudando, como a violência está em processo de banalização, justificada por cédulas monetárias, envolvendo diferentes personagens.

Aliás, não só os personagens principais são destaques nessas duas produções. Os coadjuvantes possuem identidade própria, muitos são densos e complexos, como o jovem Eli Sunday (Paul Dano, que já havia realizado um grande trabalho em ‘Pequena Miss Sunshine’), contraditório e, também, ganancioso pastor, representando uma das forças da sociedade americana, a Igreja conservadora, assim como o psicótico Anton Chigurh, interpretado em ‘Onde os fracos não têm vez’ pelo grande ator espanhol Javier Bardem, que, assim como Daniel Planview, já está na lista dos grandes personagens da história do cinema americano, ao lado de Charles Foster Kane, Jack La Motta, Alex de Large, Don Vito Corleone, Richard Blane, Norman Bates, dentre outros.

No Oscar desse ano, o grande filme premiado foi ‘Onde os fracos não têm vez’, com quatro estatuetas (melhor filme, direção, roteiro adaptado e ator coadjuvante). ‘Sangue Negro’ conquistou duas (melhor ator e fotografia). Talvez a experiência dos irmãos Coen tenha pesado na decisão da Academia, que parece evoluir, já que filmes considerados menos comerciais têm conquistado importantes prêmios nos últimos anos. A decisão desse ano deve ter sido a mais difícil da década, já que estamos falando de duas obras-primas, em minha opinião, que deverão ser, futuramente, clássicos do cinema. Merecidamente.

Alexandre Rios.