quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Touro Indomável

Robert De Niro é um dos maiores atores da história do cinema. O que dizer do seu papel mais importante, então? O que eu, um mero cinéfilo iniciante, posso dizer é que a interpretação do pugilista Jake La Motta por De Niro é, simplesmente, coisa de mestre, que lhe rendeu um Oscar mais do que merecido. Toda a fúria animalesca de Jake La Motta chega até nós da forma mais crua possível, criando uma das personalidades mais inesquecíveis já retratadas. Um sujeito bruto, mau caráter, desagradável, arrogante e paranóico. Há, porém, uma grande dose de ambigüidade nas suas atitudes, resultado, talvez, do fato de ele ser mais um incompreendido no mundo. Jake La Motta é mais complexo do que seus músculos podem aparentar.

E essa complexidade se confunde com Martin Scorsese na época em que filmava o filme. Ele mesmo já revelou que via muito de La Motta no seu próprio estado de espírito, decorrente do fracasso do seu último filme “New York, New York”, do seu vício em cocaína e por problemas no casamento. Aliás, é incrível como os idealizadores, principalmente na arte, fazem seus trabalhos mais profundos quando estão atolados em problemas e aflições.

A história de “Touro Indomável” foi adaptada da autobiografia de La Motta, campeão invicto dos pesos-médios na década de 1940, biografia marcada pela ascensão e a decadência fulminante provocada, como já disse antes, pelo seu temperamento explosivo. Quando penso nisso, uma cena vem na minha cabeça: La Motta e sua primeira esposa discutindo. Ele estava ansioso para comer um pedaço de carne, ela dizia que ainda não estava completamente pronto, que precisava fritar mais. Ele reclama das cenouras - ”Chama isso de cenouras?”. De tanto insistir, a esposa coloca com todo o desgosto do mundo o pedaço de bife no prato do pugilista reclamão. Ele não gosta - é uma falta de respeito, ora bolas – e, então, vira a mesa, deixando quebrar tudo que estava em cima e parte pra cima da mulher ainda mais agressivo. Ela se tranca no quarto e, por coincidência, seu irmão Joey, interpretado soberbamente por Joe Pesci, chega a sua casa, tomada por gritos. Jake ouve um dos seus vizinhos berrando “O que está acontecendo, animais?!”. Ele vira pro irmão e fala “O filho da puta me chamou de animal.” Logo depois, ele solta “Eu vou comer teu cão no almoço, vagabundo!”. É uma cena hilária e caótica, que representa bem a personalidade de La Motta.

Tecnicamente, o filme é perfeito. A fotografia em preto-e-branco é magistral. Além disso, somos contemplados com a competência de sempre de Scorsese, utilizando com mais freqüência neste filme ângulos poucos usuais, ainda mais claras nas cenas de lutas no ringue. O filme é repleto de cortes rápidos, o que torna ainda mais forte a sensação de levar um verdadeiro soco no estômago, um soco de verdade, forte como os de Jake La Motta. Aliás, o filme recebeu um Oscar para Montagem, merecidíssimo. Deveria receber ainda, no mínimo, os prêmios de Melhor Filme e Direção, mas nem sempre a Academia é justa, como a História tem provado. Hoje, “Touro Indomável” é considerado o melhor filme da década de 80 e um dos melhores de todos os tempos.

Voltando ao De Niro, devo lembrar que o ator engordou 30 quilos para interpretar os anos de decadência do boxeador, entregando-se completamente ao papel da sua vida. No final do filme, por exemplo, podemos ver uma das mais belas cenas do filme, uma homenagem a Marlon Brando, em “Sindicato de Ladrões”. É mais ou menos assim: La Motta se preparando para sua apresentação “Uma noite com Jake La Motta”, fala consigo mesmo:

-... Lembram-se da cena no carro com o seu irmão Charlie? Era assim... Não foi ele, Charlie. Foi você. Lembra de quando disse 'esta não é a sua noite'? “Vamos ganhar o dinheiro das apostas no Wilson. Esta não é a sua noite”. A minha noite. Podia ter acabado com o Wilson. E o que aconteceu? Ele ganhou o título. E eu um bilhete só de ida para a decadência. Depois disso já não prestei para nada, Charlie. Depois de se chegar ao topo, a tendência é sempre descer. Foi você, Charlie. Você era o meu irmão. Devia ter cuidado de mim, só um pouquinho. Devia ter cuidado de mim... Ao invés de me fazer perder de propósito por migalhas. Não compreende.
Eu podia ter tido categoria. Podia ter sido um pugilista. Podia ter sido alguém, em vez do vagabundo que sou hoje. Encaremos a realidade. Foi você, Charlie. Foi você.

Alexandre Rios.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

A Bela da Tarde


Crítica por Luís Alberto Rocha Melo - Contracampo Revista de Cinema

Séverine, a Belle de Jour, sonha com os olhos abertos. No entanto, caminha pelas ruas com óculos escuros, como a persistir nos sonhos e em uma noite interior. Quando fixa o olhar em algum ponto, o que vê não é necessariamente o que está diante de seus olhos. Há, neste modo particular de ver, uma espécie de cegueira iluminada que nasce da maneira como a personagem vivida por Catherine Deneuve se deixa penetrar pelas imagens. Conscientemente ou não, Séverine descansa o olhar naquilo que está oculto, ou excessivamente aparente: os objetos, as pessoas, as ruas, os parques e o quarto no qual se prostitui falam de outro modo para ela. E para nós, espectadores, é quase mesmo impossível delimitar, sem reduzir, o que são as "imagens reais" e o que são as "imagens criadas" pela imaginação fértil (ou super-receptiva?) de Séverine. Já não há fronteiras, nem mesmo universos paralelos: o cinema é o espaço da desarticulação total do que é "subjetividade" e "realidade concreta". Em Bela da Tarde tudo é movimento, e o que interessa - como num bom filme de ação - é acompanhar os deslocamentos dos personagens (e da câmera que os segue).

Bela da Tarde (1967) é possivelmente o filme mais conhecido de Luis Buñuel. Pertence à fase madura de sua obra, que compreende títulos como Viridiana (1961), O Anjo Exterminador (1962), Diário de Uma Camareira (1964), Simão do Deserto (1965), Tristana (1970), O Discreto Charme da Burguesia (1972), O Fantasma da Liberdade (1974) e Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977). Pertence, portanto, a uma fase na qual se cristalizou um certo "estilo buñueliano", bastante diverso da primeira fase surrealista (Um Cão Andaluz, L'Age D'Or) e dos filmes realizados no México, durante a década de 1950. E poderíamos falar aqui em "estilo buñueliano" como se fala em um estilo "hitchcockiano", ou seja, como uma "marca registrada", o que inclui certo apelo à cumplicidade do espectador, que já sabe o que esperar - ou melhor, no caso de Buñuel, o que não esperar - do filme que irá assistir. A Bela da Tarde, aliás, não deixa de ser um "filme de mistério" (já que mencionamos Hitchcock). O suspense, porém, é de outra ordem: o que nos inquieta não é a fatalidade trágica, mas o acaso. O fio narrativo, de ressonância melodramática, é inteiramente subvertido pela forma como Buñuel sublinha o gesto concreto quando tudo é fantástico; abrir e fechar uma porta ou andar pela rua são atos igualmente carregados de absurdo.

Com a fluidez de um filme de gênero (mistério? melodrama?) e a ambigüidade característica de Buñuel, Bela da Tarde é sobretudo ritmo. Eliminando por completo a música de fundo, o filme se torna ainda mais musical, numa perspectiva próxima a de Robert Bresson, por exemplo. O som, os ruídos, realistas ou não, são sempre elementos que sublinham musicalmente as ações: passos que ecoam em um corredor ou sussurram em tapetes; os sinos de uma igreja ao longe; os cincerros das vacas, os guizos de uma carruagem, os cascos dos cavalos, o miar de um gato, os sons de uma buzina e o ruído dos automóveis. Buñuel se atém ao universo aparente do sensível: a mise-en-scène requer apenas a eficiência do gesto e do enquadramento. O corte não apenas nos faz sair de um lugar (espaço físico) para outro, mas nos transporta para percepções diferentes. Acompanhando a trajetória de Séverine, experimentamos o que é viver com a sensação permanente de uma suspensão temporal.

Filmando desta forma, Buñuel evita o que poderia fazer de A Bela da Tarde um péssimo filme: a construção moralista de personagens psicologizados. De fato, as motivações que levam Séverine a se prostituir (imaginariamente ou não) importam tanto quanto o conteúdo da misteriosa caixinha que o "cliente asiático" leva ao bordel de Anais. Buñuel não se interessa pelo "drama burguês". Prefere filmar os burgueses debatendo-se em seus dramas, da forma mais exterior possível (mesmo que o que vemos represente a subjetividade da protagonista). E é por isto que há tanto humor nos filmes de Buñuel (nem tanto em Bela da Tarde, mas principalmente em trabalhos como Simão do Deserto e O Fantasma da Liberdade). Mais uma vez, o gesto mais comum é tão perverso quanto os mais obscuros fetiches dos clientes do bordel. Pierre (Jean Sorel), o marido de Séverine, e seu sorriso empastelado; Husson (Michel Picolli) e sua polidez sarcástica; todos os tipos que passam pela Belle de Jour - pervertidos ou não - são tão ou mais monstruosos quando aparentam uma pretensa normalidade. O jovem Marcel (Pierre Clementi), o bandido que se apaixona por Séverine, é talvez o único personagem que escapa da galeria dos hipócritas.

Resolvendo trabalhar pela primeira vez na vida, Séverine decide optar pela mais antiga das profissões. Seu nome de guerra, Bela da Tarde, não somente indica a sua beleza, mas seu horário de trabalho, e a este horário Séverine agarra-se como a única bóia de salvação. Com um nome de guerra, ela termina por nomear seu próprio cotidiano. Mas não é a intenção de Buñuel nos guiar através do "dia-a-dia" de uma "mulher em busca de si mesma". Em A Bela da Tarde nenhum personagem merece o "privilégio da identificação" com o espectador, já que todos são filmados com absoluto rigor por uma câmera que os torna fantasmas de realidades múltiplas. Se Séverine se apresenta como um veículo para nos abandonarmos e nos entregarmos ao devaneio, tanto pior para ela: das duas às cinco da tarde, nós também somos donos da Belle de Jour e dela nos afastamos assim que soam as seis horas e ela se torna Séverine, a mulher frígida de Pierre. Ou melhor: é então que voltamos a observá-la enquanto ela vive seus sonhos ou pesadelos. De olhos bem abertos, que é, de resto, a maneira de se sonhar no cinema.

Alexandre Rios.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Meu Blog

[...] É blog que não acaba mais. E cada blog dá links, ou enlaces, com outros blogs. Nós olhando e eles se reproduzindo a bloguear qual besta de mil costados. Todo mundo tem opinião. E onde todo mundo tem opinião, ninguém tem opinião.

Vaidade, tudo é vaidade. Aqueles tipos estranhos, infelizes e solitários, que escreviam para os jornais e revistas “parabenizando pela reportagem” ou “indignados com a permanência na equipe do colunista Fulano de Tal”, todos têm seu blog. Alguns caprichadíssimos. Os professores de “blogueção” proliferam e faturam alto.

Maravilha. Nunca o mundo foi mais democrático. Se um dos critérios da democracia é todos terem opinião sobre tudo. Ler essa opinião é mais embaixo. Bem mais embaixo.

Blogs e mais blogs. Sobre tudo. Quem é alguém, ou melhor dizendo, quem não é ninguém ou almeja ser alguém, tem seu blog. Acabou aquela história de escrever palavrão nas paredes dos mictórios públicos. Blogueia-se, ao invés.

Tendo isso em mente, e não querendo ficar para trás, alardeio-me logo avisando que estou com um guru informático preparando-me para inaugurar meu blog. [...]

(Ivan Lessa - BBC Brasil)

Thales Azevedo.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

domingo, 14 de dezembro de 2008

E Machado virou circo...

Machado de Assis é Bentinho. Nós somos Capitu. A analogia é simples: nós abastardamos a obra de Machado de Assis. No centenário da morte do escritor, Dom Casmurro e seus outros romances perderam qualquer sinal de paternidade machadiana. Eles parecem gerados por Escobar, o amante de Capitu.

Luiz Fernando Carvalho, diretor da série televisiva Capitu, é o mais perfeito Escobar que surgiu até agora. Seu "Dom Casmurro" tem o nariz de Luiz Fernando Carvalho, tem o sorriso de Luiz Fernando Carvalho, tem a mentalidade de Luiz Fernando Carvalho. Nada nele recorda o "Dom Casmurro" de Machado de Assis, apesar de reproduzir diálogos do romance. Na série, Bentinho aparece estranhamente caracterizado como Dick Vigarista, do desenho animado Corrida Maluca: nas roupas, no bigode, na magreza, no temperamento e, acima de tudo, na canastrice do ator que desempenha seu papel. Qual é o melhor candidato a Muttley? O agregado José Dias.

A série Capitu tem um aspecto circense. É Machado de Assis encenado por Orlando Orfei. É Bentinho imitando Arrelia no picadeiro de Fausto Silva: "Como vai, como vai, vai, vai? Eu vou bem, muito bem, bem, bem". Luiz Fernando Carvalho usa uma linguagem grotesca, afetada, espalhafatosa, cheia de contorcionismos e de malabarismos. Machado de Assis é o oposto. No livro Dom Casmurro, o relato de Bentinho é espantosamente seco e desencantado. Ele narra sua história apenas para combater o tédio: sem drama, sem sentimentalismo, sem teatralidade. Quando Bentinho descobre que o filho bastardo de Capitu com Escobar morreu de febre tifóide, ele comenta simplesmente: "Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro".

Luiz Fernando Carvalho só foi autenticamente machadiano na metalinguagem. A atriz que interpreta Capitu está grávida de se-te meses. Quando um repórter lhe perguntou se o pai do menino era Luiz Fernando Carvalho – o Escobar de Jacarepaguá –, ela se recusou a responder, limitando-se a declarar, como uma Capitu do funcionalismo público: "Não vou dizer a identidade e o CPF dele".

A literatura brasileira tem um escritor. Um só. O que fizemos com ele, nos últimos cinqüenta anos, foi traí-lo com todos os Escobar que apareceram. Desde que Helen Caldwell, em 1960, negou o adultério de Capitu, moldando Dom Casmurro às suas teorias feministas, Machado de Assis foi raptado pela crítica esquerdista. Em particular, por John Gledson e Roberto Schwarz, que o transformaram ridiculamente num agente da luta de classes, empenhado em denunciar os abusos da classe dominante. Na realidade, Machado de Assis é mais complicado do que isso. Ele é um satirista conformista e resignado, que zomba da mesquinhez de nossa sociedade e acredita que, quando ela muda, muda sempre para pior. A série Capitu festeja o abastardamento da obra machadiana. Machado de Assis sabe bem: de agora em diante, isso só pode piorar.

(Diogo Mainardi - 17/12/2008)

Thales Azevedo.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Mashed in Plastic


"Idéias são como peixes. Se você quiser pegar peixes pequenos, pode ficar na superfície. Mas se você quiser pegar os peixes grandes, tem que ir fundo, fundo, fundo..."

São com estas palavras que o disco Mashed in Plastic é introduzido. Ele é, basicamente, um presente para os fãs de David Lynch, com uma compilação dos principais temas das trilhas sonoras dos seus filmes, que são - vale ressaltar - quase todas marcantes. Isso graças, em parte, ao parceiro de longa data do diretor, o compositor Angelo Badalamenti. As mentes criativas de ambos resultaram, sem dúvidas, em trilhas sinistras, instigantes. Quem viu Cidade dos Sonhos, Estrada Perdida e Veludo Azul - só para citar os mais marcantes, em minha opinião - sabe do que estou falando.

Trechos de entrevistas com o Lynch, músicas de bandas como os Beatles, Smashing Pumpkins e AC/DC, além de diálogos clássicos - como o "Call me" em Estrada Perdida - se misturam e formam um disco curioso. Confesso que achei um pouco dance demais em alguns momentos. Mesmo assim, vale muito a pena baixar.
*Já ia me esquecendo dos créditos: encontrei o link do download no Cult Blog, do jornalista Marcelo Janot.

Alexandre Rios.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Graciliano, o grande


Graciliano Ramos (1892-1953) nunca foi vítima do preconceito organizado que existe contra o Monteiro Lobato para adultos, por exemplo. Sempre foi considerado entre os grandes escritores brasileiros. Mas há muito a crítica e a academia – esta em especial – negam-lhe o devido lugar no panteão da prosa modernista: o topo, onde segue embalsamado por certa mistificação o sem dúvida inventivo Guimarães Rosa. As razões que levam à superestimação de um concorrem para subestimar o outro.

Por que Graciliano agora? A Editora Record relança a sua obra, sob a supervisão de Wander Melo Miranda. Trata-se de um trabalho bem-cuidado, com a recuperação de textos originais, correções feitas pelo próprio escritor, cronologia e bibliografia de e sobre o autor de Vidas Secas – ou "Cyx Knbot" em búlgaro, uma das dezesseis línguas em que ele pode ser lido. O romance, que completa setenta anos, merece especial atenção: além da edição regular, há uma outra, limitada a 10.000 exemplares, no formato de um álbum, com capa dura e papel cuchê (208 páginas, 99 reais): cuidado à altura das belas fotos de Evandro Teixeira, que acompanham o texto. Sete décadas depois da publicação do livro, o fotógrafo refez o roteiro de Fabiano, sinhá Vitória, Baleia e os meninos.

Vidas Secas? É bastante conhecida uma das mais devastadoras passagens da literatura brasileira: as páginas em que Graciliano narra a agonia e morte da cadela Baleia. Fabiano, que vaga com a família pelo sertão, tangido pela seca, decide matá-la com um tiro para aliviar-lhe o sofrimento. Segue um trecho:

"A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia (...) E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo (...). Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano (...). Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora, cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas (...). A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia (...). A pedra estava fria. Certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás (...) gordos, enormes".

Algumas das qualidades que fazem de Graciliano mestre da língua portuguesa e do texto literário estão acima condensadas. Vidas Secas, saído da pena de um escritor das Alagoas, de esquerda, poderia ser um romance de denúncia social, eivado de proselitismo e anseios libertários. Mas não. O autor repudiava o chamado "engajamento" na arte. Referia-se a Jdanov (1896-1948), o comissário da Cultura da URSS que fundara as bases do chamado realismo socialista, como o que era: "uma besta". Baleia é mais comoventemente miserável quando se arrasta sobre dois pés, quando "anda como gente". Ele não deprecia o homem, comparando-o ao cão; antes, hominiza o cão porque vê com compaixão a nossa condição – e essa compaixão inclemente pelo humano é marca da sua obra. Há dias, em passagem pelo Brasil, José Saramago declarou padecer de "marxismo hormonal". Segundo o escritor português, não merecemos a vida. Ele nos negaria um pedaço de osso. "Preás gordos, enormes", então, nem pensar. 

O mundo da Baleia agonizante é primitivo, feito só de sentidos e sensações. Mas ele nos chega numa linguagem culta, fluente, rigorosa, sem charadas vocabulares para "desconstrução" em colóquios acadêmicos. Tanto em Vidas Secas como na obra de temática urbana, proto-existencialista – Graciliano traduziu A Peste, de Albert Camus, em 1950 –, os adjetivos e as imagens nascem das coisas. Como escrevi num ensaio que integra o livro Contra o Consenso, não há ali "uma única e miserável metáfora que não seja quente de sol (...), pulsante de sangue, aguda de espinhos, dura de pedra. Tudo nasce da matéria precária da vida". A face regionalista de sua literatura não folcloriza a realidade sertaneja, tentando atribuir-lhe alguma metafísica ou lógica interna superiores, que demandassem sintaxe e vocábulos de exceção. O estoque da língua e as regras do jogo lhe bastam. Como ele mesmo escreveu, "começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer". [...]

Em Graciliano, a literatura é um jogo da inteligência analítica, como neste trecho de Insônia: "Um silêncio grande envolve o mundo. Contudo, a voz que me aflige continua a mergulhar-me nos ouvidos, a apertar-me o pescoço. (...) explico a mim mesmo que o que me aperta o pescoço não é uma voz, é uma gravata". A conspiração das vozes do silêncio que perseguem o insone perdem imediatamente o encanto de uma maldição metafísica: basta afrouxar a gravata. Sabemos a origem das nossas aflições, o que não quer dizer que tenhamos respostas para elas. Com freqüência, não. E isso nos torna demasiadamente humanos. Não para o comunista Saramago, claro...

Essa lembrança me remete ao mais explicitamente político dos muitos Gracilianos, incluindo aquele que chegou até a ser prefeito da cidade de Palmeira dos Índios (1928-1930). Refiro-me ao livro Memórias do Cárcere, reeditado pela Record em um único volume. O escritor ficou preso entre março de 1936 e janeiro de 1937, acusado de ligações com a conspiração que resultara no levante comunista de 1935. Era mentira. Filiou-se ao PCB só em 1945. Nesse livro, publicado postumamente no ano de sua morte, ele se agiganta. Em muitos sentidos, a cadeia é a caatinga de um Graciliano-Fabiano que, à diferença do personagem de Vidas Secas, consegue se expressar com clareza. Em vez do herói da resistência, o anti-herói dos escrúpulos que comunistas chamariam pequeno-burgueses. Definitivamente, ele não era o "novo homem socialista". Era o velho homem apegado a suas dores privadas, a seus anseios, a suas mesquinharias. [...]

Quando o brutal Paulo Honório, em São Bernardo, vê consumada a sua obra, restam-lhe a solidão e a insônia. O tema aparece em Angústia ("visões que me perseguiam naquelas noites compridas"), no autobiográfico Infância ("À noite o sono fugiu, não houve meio de agarrá-lo") e até nas suas cartas de amor. O homem de Graciliano vive em vigília, num ambiente sempre hostil, seja a caatinga, a cadeia ou as paisagens íntimas.

Falei de sua compaixão pelas dores humanas. Também nesse caso, seu horizonte não é finalista: não tem uma resposta para a nossa condição nem a vê com moralismo. Paulo Honório, por exemplo, acaba, na prática, matando quem tentara proteger: Madalena, a sua mulher. Tem ciúme da piedade que ela sente do mundo e ódio da sua própria incapacidade de se comover. Narrado em primeira pessoa, o romance não o caracteriza como um monstro. É só um ser desesperado tentando, como todos nós, sobreviver, salvar-se. [...]

"Todo homem mata aquilo que ama", escreveu na cadeia o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Por isso nos arrastamos, como Baleia, vida afora, em busca de perdão. Somos uns cães. Mas, ainda assim, dignos de amor. E cerraremos os olhos contando acordar felizes, num mundo "cheio de preás gordos, enormes".

(Reinaldo Azevedo)

Thales Azevedo.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

A síndrome de Truman

A epidemia do século 21 já tem nome: "Síndrome de Truman". O nome pertence a filme de 1998, "The Truman Show/ O Show de Truman", com Jim Carrey no papel principal. Não lembram? Eu lembro: o personagem de Carrey era um simpático vendedor de seguros que, gradualmente, descobre a fraude existencial que o envolve. A sua vida, desde o berço, é apenas um gigantesco "reality show", filmado por câmeras ocultas 24 horas por dia. E todas as pessoas que o rodeiam --mulher, família, vizinhos, amigos e inimigos-- são meros actores contratados para representarem seus papéis.

O filme termina em registro heróico, com Carrey a libertar-se do pesadelo, ou seja, abandonando o estúdio onde viveu encerrado (e filmado) durante décadas.

Acontece que o pesadelo já emigrou para a realidade. Leio agora na imprensa do dia que cresce assustadoramente o número de pessoas que acredita genuinamente que a vida não lhes pertence. Pertence a um produtor televisivo que montou uma gigantesca ilusão em volta. Como no filme de Jim Carrey, esta gente-se sente-se vigiada por câmeras imaginárias e olha para as respectivas vidas como se apenas estivessem a cumprir um roteiro pré-escrito.

Não confiam na família. Não confiam nos amigos. Não confiam em ninguém. E há mesmo casos de tentativas de suicídio por criaturas transtornadas que não aguentam "continuar" no "show". Uma das histórias mais pungentes pertence a um anónimo norte-americano que, cansado de "representar", entrou num edifício do governo federal e implorou, de joelhos, para que desligassem as câmeras e terminassem com o programa. Ele queria, simplesmente, sair.

E os médicos? Os médicos têm uma palavra importante, a começar pelos psiquiatras. Mas, como os próprios admitem, o caso não é simples de resolver. Desde logo porque eles próprios são vistos pelos pacientes como parte do engodo. Os médicos não são médicos. São atores, vestidos de bata branca, que tentam convencer o doente de que ele está doente.

Não pretendo levantar polémicas inúteis. Mas, confrontado com a epidemia, eu próprio duvido da doença dos doentes. E pergunto, inteiramente a sério, se eles não serão as únicas pessoas lúcidas no meio da loucura reinante.

Um pouco de história talvez ajude: durante séculos, a posição que ocupávamos em sociedade era determinada pelo berço em que nascíamos. Nascer no berço errado, em circunstâncias de pobreza material e cultural, era meio caminho andado para uma vida igualmente pobre e lúgubre. Existem todas as exceções do mundo, claro. Mas as exceções apenas servem para comprovar a tese: a nossa posição em sociedade era uma questão de sorte, não de mérito.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, e o enterro do Velho Mundo que o conflito arrastou consigo, tudo mudou. O berço continuou a ter palavra importante. Mas não mais decisiva. O mérito passou a determinar o nosso lugar em sociedade. Em teoria, e sobretudo na prática, seria possível, ao filho de um pobre, entrar nos salões de um rico. Bastava, para isso, que o pobre ganhasse o dinheiro necessário para os comprar. As nossas sociedades são a prova provada de que a meritocracia vingou e que o "self-made men" derrotou grande parte dos preconceitos de classe.

E hoje? Hoje, como escreve Toby Young em recente ensaio para a revista "Prospect", a era meritocrática foi enterrada. Depois do berço e do mérito, chegámos à era da celebridade. Podemos nascer no berço certo; podemos até subir a corda social com os nossos próprios pulsos, provando o nosso valor intrínseco; mas se não somos "famosos", ou seja, se não alimentamos o voyeurismo coletivo em que vivemos, não somos rigorosamente nada. Vivemos em sociedades mediatizadas e massificadas. E numa sociedade mediatizada e massificada, é o anonimato, e não a pobreza ou a incompetência, que pesa profundamente sobre a espécie.

Não é de admirar, por isso, que uma parte crescente de seres humanos se sinta cansada do circo instalado; se sinta cansada, enfim, de um mundo de celebridades ocas que, na verdade, parece um "reality show" permanente. Eles imploram para sair do espetáculo na impossibilidade de o derrotarem.

Loucos? Não sou médico. Sou apenas um colunista disfarçado de médico. Mas desconfio que existe mais sanidade na loucura dessa gente do que em todos os "reality shows" que rodeiam as nossas vidas.

João Pereira Coutinho

Alexandre Rios.