domingo, 14 de dezembro de 2008

E Machado virou circo...

Machado de Assis é Bentinho. Nós somos Capitu. A analogia é simples: nós abastardamos a obra de Machado de Assis. No centenário da morte do escritor, Dom Casmurro e seus outros romances perderam qualquer sinal de paternidade machadiana. Eles parecem gerados por Escobar, o amante de Capitu.

Luiz Fernando Carvalho, diretor da série televisiva Capitu, é o mais perfeito Escobar que surgiu até agora. Seu "Dom Casmurro" tem o nariz de Luiz Fernando Carvalho, tem o sorriso de Luiz Fernando Carvalho, tem a mentalidade de Luiz Fernando Carvalho. Nada nele recorda o "Dom Casmurro" de Machado de Assis, apesar de reproduzir diálogos do romance. Na série, Bentinho aparece estranhamente caracterizado como Dick Vigarista, do desenho animado Corrida Maluca: nas roupas, no bigode, na magreza, no temperamento e, acima de tudo, na canastrice do ator que desempenha seu papel. Qual é o melhor candidato a Muttley? O agregado José Dias.

A série Capitu tem um aspecto circense. É Machado de Assis encenado por Orlando Orfei. É Bentinho imitando Arrelia no picadeiro de Fausto Silva: "Como vai, como vai, vai, vai? Eu vou bem, muito bem, bem, bem". Luiz Fernando Carvalho usa uma linguagem grotesca, afetada, espalhafatosa, cheia de contorcionismos e de malabarismos. Machado de Assis é o oposto. No livro Dom Casmurro, o relato de Bentinho é espantosamente seco e desencantado. Ele narra sua história apenas para combater o tédio: sem drama, sem sentimentalismo, sem teatralidade. Quando Bentinho descobre que o filho bastardo de Capitu com Escobar morreu de febre tifóide, ele comenta simplesmente: "Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro".

Luiz Fernando Carvalho só foi autenticamente machadiano na metalinguagem. A atriz que interpreta Capitu está grávida de se-te meses. Quando um repórter lhe perguntou se o pai do menino era Luiz Fernando Carvalho – o Escobar de Jacarepaguá –, ela se recusou a responder, limitando-se a declarar, como uma Capitu do funcionalismo público: "Não vou dizer a identidade e o CPF dele".

A literatura brasileira tem um escritor. Um só. O que fizemos com ele, nos últimos cinqüenta anos, foi traí-lo com todos os Escobar que apareceram. Desde que Helen Caldwell, em 1960, negou o adultério de Capitu, moldando Dom Casmurro às suas teorias feministas, Machado de Assis foi raptado pela crítica esquerdista. Em particular, por John Gledson e Roberto Schwarz, que o transformaram ridiculamente num agente da luta de classes, empenhado em denunciar os abusos da classe dominante. Na realidade, Machado de Assis é mais complicado do que isso. Ele é um satirista conformista e resignado, que zomba da mesquinhez de nossa sociedade e acredita que, quando ela muda, muda sempre para pior. A série Capitu festeja o abastardamento da obra machadiana. Machado de Assis sabe bem: de agora em diante, isso só pode piorar.

(Diogo Mainardi - 17/12/2008)

Thales Azevedo.

3 comentários:

Marcos O. C. Alves disse...

Dessa vez, eu concordo plenamente com o "Dioguito".

Rebecca disse...

Não sei o que ele tem contra o circo.Esse por sua vez sempre me encantou. Talvez nada melhor do que transformar a "aparente secura" de uma obra, cheia de pequenos detalhes e parcialidades, sentidas exclusivamente pelo processo de ler, em uma explosão de sinceridades. Uma extravagancia de sentimentos tão reprimidos em uma mente só, uma vida moldada pelo ciúme patologico. Nada melhor do que se ludibriar com uma versão de uma historia, ou melhor, achar nessa mesma uma justificativa. E que se use de todos os argumentos! De todas as cores! De todas as formas que a criatividade e a leveza do recurso oferece! Acho que, enfim, conseguiu-se unir as duas pontas da vida.

Anônimo disse...

Sinceramente, temos que lembrar que o que foi feito é uma 'adaptação' à televisão. A obrigação de ser 100% fiel ao livro é ZERO! A linguagem teatral usada pelo diretor foi muito bem vinda, pois pôde aproximar o público jovem de um clássico que muitas vezes eles renegam.
Tambem é bom lembrar que Machado sempre foi m apreciador do teatro, tanto que escreveu obras para serem encenadas.
O roteirista foi muito feliz por ter preservado o texto e a linguagem.
A magia do teatro só fez encantar ainda mais a história. o brilho não foi perdido.
O que eu não gostei foi apenas alguns exageros que não só ficaram feios dentro da história de Machado, mas do contexto teatral.
Tirando isso, valeu a pena ter assistido.
Ah, desculpa qualquer coisa.
Respeito a opinião do autor.