-É bonito, não acha?
-Bonito? Não sei. Tão parado. Como se estivesse... esperando.
-Você é poético demais para um homem de negócios.
-É? O deserto não tem o mesmo efeito sobre você?
-Não. Prefiro gente a paisagens.
-Há homens que vivem no deserto.
-Tem família?
-Não tenho família ou amigos. Só algumas obrigações e um coração ruim.
(...)
-Eu não deveria beber.
-Que tal mais um drinque?
-Por que não?
-E agora?
-Vou continuar minha volta ao mundo. Sou um globetrotter. Vivo um dia de cada vez.
-Deve ser diferente para você, não?
-É diferente.
-Mas deve ter estado em muitos lugares.
-É verdade.
-E Umbugbene? Aposto que nunca esteve lá.
-Não.
-Um lugar horrível. Aeroportos, táxis, hotéis. São todos iguais no fim das contas.
-Não concordo. Somos nós que nunca mudamos. Traduzimos situações e experiências da mesma maneira. Nós nos condicionamos. Somos escravos da rotina.
-É isso?
-Algo do gênero. Por mais que você tente...É muito difícil deixar os hábitos de lado.
(...)
-Posso fazer uma pergunta?
- Uma, sim.
- Só uma. A mesma. Do que está fugindo?
-Vire-se de costas para o banco da frente. Fugi de tudo. Da minha mulher. Da casa. De um filho adotivo. De um bom emprego. De tudo, exceto alguns maus hábitos.
-Como conseguiu isso?
-Houve um acidente. Todos pensaram que eu estava morto. E eu deixei que pensassem.
-Não há como explicar, há?
-Acho que vou ser garçom em Gibraltar.
-Óbvio demais.
- Ou um escritor no Cairo.
- Romântico demais.
- Que tal traficante de armas?
- Improvável demais.
-Na verdade, acho que sou um.
(...)
-Não seria horrível ser cego?
-Conheço um homem que era cego. Com quase 40 anos, fez uma cirurgia e recobrou a visão.
-E como foi?
-Primeiro, foi o êxtase. Ele se sentiu muito bem. Rostos... Cores... Paisagens. Mas depois tudo começou a mudar. O mundo era muito mais pobre do que imaginava. Ninguém tinha contado quanta sujeira havia nele. Quanta feiúra. Ele via feiúra em toda parte. Quando era cego atravessava a rua sozinho com uma bengala. Depois de recobrar a visão passou a sentir medo. Começou a viver na escuridão. Nunca saía do quarto. Depois de três anos ele se matou.
(...)
-Este é David Robertson? Você o reconhece?
-Nunca o vi.
-Você o reconhece?
-Sim.
Profissão: Repórter, obra-prima irretocável.
Alexandre Rios.
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