domingo, 29 de março de 2009

Gran Torino

[...] Esqueçam: não é um filme sobre choque de culturas. Não é um filme sobre a tolerância. Não é um filme sobre as maravilhas do multiculturalismo. Tudo isso é só uma leitura politicamente correta, e errada, daquela que é, sem dúvida, a obra-prima do diretor e ator.

Eastwood encarna a figura do velho Walt Kowalski, um veterano da guerra da Coréia, de onde traz alguns traumas e arrependimentos. Ele é proprietário de um ainda reluzente Gran Torino, de 1972, carro da Ford, uma das montadoras americanas que já foram expressão da opulência do país e que hoje são o retrato de sua crise. De fato: a América como Walt a conheceu já foi para a cucuia faz tempo. É quase uma peça de museu, como seu carro.

Viúvo, Walt mora sozinho, longe dos filhos, caricaturas daquela classe média que certamente se endividou mais do que podia. Ele não suporta o mundo como é e tem clara noção de que o seu mundo já se perdeu. Irascível, quer apenas que o deixem em paz, que não pisem em seu gramado e que não o tratem com forçada intimidade. Ocorre que seu bairro, a exemplo da América, também mudou: empobreceu e foi tomado por imigrantes. Walt assiste ao que entende ser uma “invasão” de asiáticos (não que ele se dê bem com os negros...), com seus costumes estranhos. Uma família da etnia Hmong, originária do Laos, vai ser sua vizinha.

Uma gangue hmong impõe ao filho mais velho dessa família, Thao (Bee Vang), uma tarefa: roubar o Gran Torino, operação frustrada em razão da pronta intervenção de Walt. E aquela estranha gente passa, então, a fazer parte de sua vida. O velho decide enfrentar a gangue e se transforma no herói da comunidade hmong, o que vai custar bem caro. Nota: a irmã de Thao explica a Walt que a família deixou seu país de origem fugindo do... comunismo!

Walt decide fazer do retraído Thao um verdadeiro homem. Ou, ao menos, o que ele entende por isso. Eastwood brinca à vontade com os clichês, como a dizer aos americanos: “Pensam que somos isso”. Como a dizer ao mundo: “Sei que vocês acham que somos isso”.

Abstenho-me de comentar alguns grandes momentos de Gran Torino porque acabaria contando a história. E isso não se faz - é bem mais fácil escrever sobre o que todo mundo já viu... Digamos que eu os convide a ver o filme de um republicano inteligente, que admite, sim, com extrema dureza, as várias crises que hoje se conjugam em seu país. De um lado, está o veterano da Coréia: rígido, disciplinado, inclinado a cuidar apenas da própria vida e, em política, fiel à idéia da “América para os americanos”. Do outro, fragmentação, línguas estranhas, gangues, carros japoneses, amoralismo... Se os imigrantes são os “bárbaros”, com os seus exotismos, os naturais são os cínicos decadentes – e a sua própria família ilustra como ninguém esse estado de coisas.

No poema À Espera dos Bárbaros, de Constantino Kaváfis (escrevi um post a respeito no dia 7 de abril de 2007), os romanos, com o seu império em frangalhos, esperam a chegada de povos estranhos. Ninguém se ocupa mais de nada. Afinal, “os bárbaros estão chegando”. Ocorre que o tempo passa, e eles não vêm. As duas últimas estrofes do poema são estas:

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

Será que Eastwood compreendeu, finalmente, as virtudes do multiculturalismo e, como querem alguns, resolveu purgar, ele também, republicano notório, os erros dos EUA? Será que Eastwood compreendeu, finalmente, que os tais valores americanos são tão ultrapassados, embora reluzentes, como o seu Gran Torino?

Pois é... Nada disso! Eastwood não canta as glórias de povo nenhum. Tampouco sugere que os hmongs tenham lá grande contribuição a dar à América, embora se torne amigo da família. A resposta necessária, vocês verão, inclusive para proteger os direitos dos hmongs, sai da América mais profunda.

Prestem atenção, nas cenas finais, ao close dado num isqueiro Zippo, espécie de símbolo dos soldados americanos na Segunda Guerra, na Guerra da Coréia e na Guerra do Vietnã. Eastwood ainda acredita no poder civilizador da América.

(Reinaldo Azevedo)

Thales Azevedo.

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