sábado, 30 de maio de 2009

Se Meu Apartamento Falasse

Bom cinema é muito mais do que a simples soma de palavras e imagens. Os melhores filmes funcionam como passes de mágica. Nestas produções, não é raro que a soma de 2 mais 2 dê 5, ou mais. Os melhores diretores são aqueles que aplicam a teoria básica da montagem de Eisenstein (o significado é construído a partir do choque de duas tomadas) em um nível mais profundo. Você soma diálogos, música, fotografia, direção de arte, atuações para conseguir um significado que dois ou três destes elementos, sozinhos, não dariam conta. Um dos diretores que mais fez filmes neste nível superior foi o austríaco Billy Wilder. “Se Meu Apartamento Falasse” (The Apartment, EUA, 1960), uma das comédias românticas mais brilhantes de todos os tempos, é um deles.

A idéia que está na base de “Se Meu Apartamento Falasse” começou a germinar na cabeça de Billy Wilder quase vinte anos antes, em 1946. O diretor austríaco roubou-a de um filme de David Lean chamado “Desencanto”, que ele viu no mesmo ano. O filme tematizava o affair proibido de um homem e uma mulher, ambos casados com outras pessoas. Para se encontrar, eles usavam o apartamento de um amigo, um sujeito que aparece em apenas duas cenas. Na cabeça de Wilder, este personagem quase invisível tinha uma história mais interessante do que a do casal. Podia virar um protagonista.

No entanto, Wilder não era bobo. Ele sabia que naquela época o sistema de censura existente em Hollywood jamais permitiria um filme cuja trama tinha como base geográfica um apartamento usado para encontros sexuais proibidos. Anotou-a para o futuro. Esperou até 1959, quando a ocasião propícia finalmente apareceu. Na época, vários fatores pareciam convergir em favor do projeto: Wilder se tornara um dos diretores mais respeitados do mundo; a mentalidade das pessoas estava mudando e as noções de infidelidade e sexo fora do casamento eram muito mais naturais; e a censura em Hollywood enfraquecia a olhos vistos.

Para completar, o diretor acabara de encontrar o ator perfeito para o personagem: Jack Lemmon. Junto com o roteirista parceiro I.A.L. Diamond, Wilder desenvolveu o enredo de modo bem diferente de uma comédia romântica clássica, mas de forma que o filme pudesse aproveitar todo o potencial cômico do ator. É uma história simples, calcada em uma situação curiosa: uma das centenas de funcionários anônimos de uma mega-seguradora, C.C. Baxter (Lemmon), empresta seu apartamento em Nova York para que os superiores hierárquicos, como o chefão Sheldrake (Fred MacMurray), possam se encontrar com as amantes, enquanto ele mesmo é obrigado a passar quase todas as noites no frio da calçada, esperando para voltar para casa.

O grande segredo da excelência de “Se Meu Apartamento Falasse” foi o cuidado com que o diretor austríaco construiu os dois personagens principais – além de Baxter, há a ascensorista Fran Kubelick (Shirley MacLaine), que é o interesse romântico do protagonista na história. O cineasta recusou os estereótipos das comédias de costumes tradicionais, onde os protagonistas normalmente têm os perfis situados em situações-limite. Ou seja, em geral os personagens principais de tais filmes são pessoas puras e ingênuas, ou são canalhas a caminho de uma inevitável redenção. Aqui, porém, não há nada disso. Wilder não gosta de pretos e brancos; prefere explorar a área cinzenta e muitas vezes indefinível que fica no meio.

Baxter e Fran são jovens, mas já conhecem os caminhos traiçoeiros da vida. Já levaram muitas sarrafadas do destino e se acostumaram à derrota. Mantêm uma ponta de esperança, sim, mas sem fazer devaneios impossíveis. São dois seres resignados. “Este filme não é sobre como a vida é bela. É sobre como a vida é”, costumava dizer Wilder. Com este conceito em mente, os roteiristas criaram um protagonista rico, complexo, tridimensional, cheio de camadas. Um homem de carne e osso, alguém cuja existência extrapola os limites retangulares de uma tela de cinema.

Seria fácil transformar Baxter em um personagem artificial e unidimensional, uma marionete do diretor, calcada nos clichês do gênero. Ele poderia ser um homem simplório manipulado por gente mais esperta, ou um espertalhão ambicioso que empresta o apartamento aos chefes apenas com a intenção de galgar a hierarquia da empresa. Mas Baxter é ambos, ou melhor, transcende as duas coisas. É um rapaz meio tímido, esforçado no trabalho, à procura de uma chance na vida, e incapaz de dizer “não”. De fato, o roteiro do filme é tão bom que Baxter, quando se vê preso na armadilha do apartamento, desenvolve uma tortuosa linha de raciocínio sobre ser um parasita social. Ele acredita mesmo nisso. Mas a gente sabe que não é verdade. Baxter não passa de um homem comum, alguém que se meteu inadvertidamente em uma situação complicada e não consegue sair dela.

As qualidades impecáveis de Wilder como diretor se manifestam não apenas na construção dos dois personagens inesquecíveis, mas nos outros departamentos. A direção de arte é um excelente exemplo. Observe como o apartamento citado no título parece apertado, sufocante, um peso que o personagem carrega nos ombros; para conseguir este efeito, Wilder mandou o responsável pelo setor, Alexander Trauner, retirar a cor branca dos cenários, de forma a suprimir os espaços vazios e acentuar essa impressão claustrofóbica.

Outro exemplo é a maravilhosa tomada em que Baxter some atrás de uma verdadeira multidão de escrivaninhas, todas idênticas, no espaçoso salão em que os vendedores de seguro, como ele, se acotovelam para trabalhar. A câmera inicialmente mostra apenas o nosso herói, mas aos poucos vai se afastando até revelar a imensidão do escritório – Baxter senta na escrivaninha número 831. Esta tomada mostra como é importante que o movimento da câmera seja planejado não de forma gratuita, mas em função da história. Da forma como a cena foi filmada, Wilder comunica ao público exatamente que tipo de homem é Baxter: um reles funcionário sem importância, um pequeno parafuso numa enorme engrenagem. Um zero à esquerda. Um de nós, enfim.

Quer mais um exemplo? Então confira a antológica seqüência em que Baxter utiliza uma raquete de tênis para escorrer o espaguete, ao cozinhar para a mulher amada. Duas coisas diferentes são comunicadas ao mesmo tempo: o fato de que Baxter é um solteiro bagunçado (caso contrário, certamente teria um escorredor) e, também, que possui um charme espontâneo impossível de ignorar (o ato de cozinhar para uma mulher é sempre simpático). Portanto, a mesma cena estabelece duas características importantes do personagem, e de quebra consegue sacramentar um inspirado e refinado momento cômico.

Se C.C. Baxter é responsável pela maior parte dos bons momentos cômicos, Fran Kubelick é uma personagem dramática por excelência. Ascensorista cobiçada por todos os homens da empresa, ela parece ser a garota dos sonhos de Baxter: linda, simpática, inteligente, não sai com qualquer um. O filme vai revelando aos poucos os detalhes da vida de Fran, até que descobrimos que ela não é o que parece; é na verdade uma mulher presa a uma paixão devastadora, uma paixão da qual não consegue se livrar. Ela sabe que o namoro é um beco sem saída e tem consciência de que deveria seguir em frente, mas simplesmente não consegue – e todos nós já vivemos, ou conhecemos alguém que viveu, uma situação assim, não é mesmo?

Para completar, a escalação do elenco é perfeita, do começo ao fim. Jack Lemmon é tudo o que Jim Carrey gostaria de ser, um ator dramático intenso com timing cômico perfeito. Shirley MacLaine, além de linda, possui um rosto angelical, que exala inocência, o que se revela fundamental para despertar um choque no público, quando passamos a conhecer o atormentado passado dela. Por fim, a cereja no topo do bolo: Fred MacMurray como o chefão Sheldrake, um canalha egoísta, fazendo uma sutil alusão ao papel que o ator interpretou em “Pacto de Sangue” (1944), do mesmo Wilder – Sheldrake seria exatamente o homem que o protagonista do clássico noir teria se tornado, caso não houvesse entrado no mundo do crime, duas décadas antes.

A união de tudo isso resulta em um filme perfeito, romântico de pé no chão, um filme perfeito para casais que, no entanto, jamais abdica de ter um pé da realidade dura e fria (neste caso, considerando o inverno da Nova York mostrada em cena, literalmente). As escolhas estéticas do diretor aperfeiçoam e dão consistência extra ao que realmente importa: uma galeria de personagens maravilhosa, gente de carne e osso, com quem a gente se importa mesmo depois de terminada a projeção.

Tanto isto é verdade que, até o fim da vida, Billy Wilder teve que responder a uma pergunta recorrente dos admiradores: o que ocorreu com Baxter e Fran depois da sensacional frase “cale a boca e dê as cartas”, que encerra a produção? A resposta de Wilder revela o diretor sensacional que ele era: quando escreveu o filme, o diretor pensava que dois personagens tão pobres e sem imaginação não conseguiriam viver juntos por muito tempo; ao terminar de filmar, não tinha mais certeza. Os dois haviam adquirido vida própria.

Por Rodrigo Carreiro (Cine Repórter)

Alexandre Rios.

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