sábado, 10 de janeiro de 2009

Crepúsculo dos Deuses


Texto por Daniel Caetano

Crepúsculo dos Deuses é um filme daquele tipo que se impõe quando aparece na tela - há um certo peso jogado sobre nós que assistimos, o peso da tradição do cinema. Não apenas o peso da tradição que o próprio enredo em torno de Norma Desmond representa, mas a tradição que Crepúsculo dos Deuses, ao mesmo tempo, encarna e agride, a de um grande clássico do cinema. E por conta disso é preciso notar como o filme foge do padrão naturalista tradicional de forma admirável: a estrutura se baseia numa narração irônica de um protagonista falecido e, ao longo do filme e especialmente em seu final, a encenação, as atuações e ambientações são hiper-expressivas - com um olhar cruel sobre os excessos típicos de um cinema perdido no passado, um cinema que não se pretendia naturalista. A própria construção de luzes sobre a figura de Swanson/Desmond tem em todos os momentos (e sobretudo nos closes) uma força além do naturalismo e da natureza, uma força que retorna com vigor a uma outra relação visual do cinema com os personagens/estrelas. Vale aqui lembrar um dado da produção para comprovar que a opção fotográfica do filme aponta para isso, e não apenas através dos jogos e luz: os negativos originais de Crepúsculo dos Deuses eram compostos de nitrato, substância que, naquele momento, já havia sido trocada pelo acetato nas películas de cinema décadas antes - e cujos tons de cinza, naturalmente, remetem os espectadores a um cinema antigo, ainda da era muda.

Narrando uma tragédia em tons assumidamente grotescos e hiper-expressivos e carregando o peso do clássico de cinema, Crepúsculo dos Deuses, portanto, não é um filme suave.

Encará-lo na tela, no entanto, é prazer dos maiores justamente por isso: é por esta maneira de apresentar seus traços de amargura e incômodo que o filme se mantém único na carreira do realizador e na história do cinema norte-americano. Não há no longo e fabuloso percurso de Wilder nenhum outro filme que agrida de forma tão clara as bases de uma cultura cinematográfica calcada no ultra-realismo (ao contrário, Wilder foi um mestre do estilo clássico) - em nenhum outro filme seu encontraremos cena semelhante à descida final de Norma Desmond. E mesmo numa cultura tão auto-crítica quando a norte-americana é difícil encontrar outro exemplo de tragédia semelhante a este, apresentando aos nossos olhos os próprios mitos abandonados - não foi feita outra peça em qualquer arte que tenha revisitado os ídolos de uma fase dourada já na sua velhice evidentemente precoce e gagá. É preciso notar o que todos sabemos: Crepúsculo dos Deuses é especialmente pesado porque vemos Gloria Swanson e Erich Von Stroheim nos papéis de Norma Desmond e Max von Mayerling, porque o filme nos apresenta imagens de Queen Kelly, o filme de Stroheim que nunca foi terminado, porque surgem na tela figuras como Buster Keaton e mesmo Cecil B. deMille e Hedda Hopper. O filme age para que a visão grotesca ligue-se definitivamente ao mundo real - e precisa ser visto e revisto numa sala de cinema porque desde início assume-se como filme de cinema.

Dos muitos aspectos que já ganharam elogios sem conta neste filme, há um que parece ser decisivo para o filme acima de todos. Crepúsculo dos Deuses não é apenas o divertido tom auto-paródico dos diálogos e da narração em off, não é apenas uma opção coerente e forte na realização visual e sonora, não é o apuro técnico fascinante com que é feito, não é somente o retrato da decadência dos sobreviventes de uma era. Mas o filme talvez possa se definir todo na relação que estabelece com sua protagonista. A interpretação de Swanson/Desmond é responsável por trazer à tona todo o impacto que o filme tem, por ser o cerne de todo o problema que o filme pretende criar com ares trágicos - essa oposição entre um mundo vivido e um mundo mítico e sonhado.

Cada gesto, cada olhar e cada momento de silêncio de Desmond se opõe a tudo que se espera como normal, menor, cotidiano, o mesmo ocorrendo com a própria luz que incide sobre ela - os próprios personagens percebem este aspecto, esta aura que se transfere da arte para a estrela e que parece fazê-la brilhar mesmo no ocaso. É lidando e pondo em relevo este tom acima do tom que o filme encontra sua chave única, sua dissonância entre seus pares. E é descrevendo com crueldade e empatia esta dor que Crepúsculo dos Deuses sabe se fazer grande e consegue se sustentar com todo seu peso, este peso que, se lhe dá a sabida aura de clássico, também mantém este seu sabor amargo e ainda incômodo.

Alexandre Rios.

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